domingo, 29 de janeiro de 2012

A polissemia do verbo ‘coisar’, o nosso curinga

Coisar. Eu coiso e tu coisas (sic). Égua, por que não? Há muito este inusitado verbo faz as vezes na língua dos lusos e seus descendentes do verbo get na língua inglesa. Registrado na obra Embargo, do célebre escritor português José Saramago, é usado indiscriminadamente quando se tenta alcançar um sentido bloqueado momentaneamente pelo cérebro.

Uma de suas usuárias mais contumazes com os quais convivo é minha querida avó. Percebo que ela se utiliza dele com grande vigor e pelo que recordo, há muitos anos. Não é que ela desconheça o sentido do verbo ou expressão cabível e o utilize como ‘quebra galho’. O que ocorre é que ela processa rapidamente o que pretende comunicar e acredita que seu interlocutor seja sabedor do mesmo sentido por ela pretendido.

Na maioria das vezes, meu irmão e eu nos divertimos com tais situações e as reproduzimos indistintamente entre nós. Quase sempre é possível entender o que ela gostaria de dizer. Difícil mesmo fica quando ela se refere a um tal inatingível ‘negócio do coisa’!!! Nosso pai entende ou aceita muito bem nosso procedimento. Já mamãe, se aborrece com frequência por não dominar e não fazer a menor questão de assimilar este trecho do código entre nós estabelecido. Em todas as vezes – ainda que não se saiba ao certo a finalidade do ‘coisa’ – é sempre uma grande diversão.

Mamãe não alcança a amplidão social desse brilhante verbo, também advérbio, adjetivo, substantivo, pronome. Após adentrar a universidade como aluno de Letras, me detive com maior empenho nessa análise e constatei sua penetração e aceitação cultural e socialmente. Ontem, tive o seguinte diálogo com minha tia:

– Tia, já vi o coisa. Tá tudo coisa.

– Ah, legal! Que bom!

Em uma linguagem formal, a conversa seguiria assim:

– Tia, já vi o fogão. Tá tudo certo.

– Ah, legal! Que bom!

Por haver entendido tudo o que pretendia lhe comunicar, parabenizei-a dizendo:

– Olha tia, a senhora já sabe se comunicar bem. Parabéns!

Bem, como o mote desta “tese” foi minha avozinha, não poderia terminá-la sem contar o mais recente ato de linguagem por ela praticado empregando seu tão estimado hábito linguístico. Fomos hoje cedo à Santa Missa e travamos os seguintes diálogos.

Na ida, uma cachorrinha se aproximou de nós. Fomos brincando com ela até a metade do caminho. Então disse:

– Vó, é melhor a gente não dar confiança, senão ela vai até a Igreja.

– É, eu sei. Ela já até coisa* na minha mão. (*coisa: fuçou, roçou)

Na chegada a casa:

– Olha, que bom que o Ewerton capinou aqui na frente.

– É, vó. Tava na hora...

– É, só que tem que coisar* tudo pra não ficar coisa*. (*coisar: recolher o mato; *coisa: feio, sujo)

E a última da manhã:

– Meu filho, tira esse pano daqui porque é mais coisa* dessa mosca pra esse lado. (*coisa: a mosca estava perturbando a nossa paciência e sujaria o guardanapo).

E dá-lhe coisa!

8 comentários:

  1. HUHUAUAUHA
    Caramba!!!! Que legal irmão.
    Eu separei o texto pra ler quando num momento oportuno que estivesse vago, como esse! Pra ttirar maior proveito.

    Pois é, lembrei mesmo do Saramago escrevendo 'coisa'.
    E que exemplo fantástico de sua vó. Confesso que não entendi nenhum emprego de 'coisa' de sua vó kkkkk

    Texto fantástico. O irmão escreve muitíssimo bem!

    Abraços, parabéns pelo blog.
    Fica com Deus amado

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  2. Obrigado, amigos, por todos os elogios!

    Continuem acessando meu blog.

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  3. PS: A obra de Saramago em questão é 'Objecto Quase', a qual contém o conto 'Embargo'.

    Desculpem-me.

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  4. Dieguito, meu querido. Pq essa coisa ainda não virou uma coisa pubicável... vamos coisar esse Lattes, meu bem. Hehhehehehe.
    Sério, muito bom o texto acho que dá pra crescer bastante e até se tornar objeto de uma comunicação, o que achas?
    Adoro a nossa língua e quando me deparo com textos assim; metalinguístico sem ser chatos normativos, se é que me entendes, fico ainda mais apaixonada pela língua. Quem domina a linguagem domina o mundo. Então vamos nos coisar que a meta é coisar o mundo.

    Beijão
    Dani

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  5. hahaha
    Adorei, Dani!
    Falei do artigo só mesmo pra tirar uma onda, mas... quem sabe, né?!
    O que mais quero é poder mostrar esse lado apaixonante da língua para os meus alunos.
    Acho que vou tentar com esse texto.

    Beijo, linda!

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  6. Kkkkkk mano só tu mesmo, a vovó é muito coisada rsrs

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